O que é ser mulher?

Por Paula Sucena

 

Não acreditamos ser possível ou necessário responder a essa pergunta, até porque, para a psicanálise, o importante não são as respostas e sim as perguntas. São elas que provocam, fazem pensar e debater. É desnecessário dizer que, para refletir sobre a questão, é fundamental fazê-lo sem moralismos e pré-julgamentos, caso contrário, chegaremos sempre em respostas arquetípicas e pré-concebidas a respeito do tema.

Podemos começar lembrando a famosa frase de Simone de Beauvoir (1908–1986), filósofa referência nos estudos de gênero, que abre o volume 2 de seus escritos, “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” (2019, p.11).

Simone se contrapõe a ideias importantes da teoria freudiana a respeito do feminino. A psicanálise, por ser uma teoria estruturada com referência à sexualidade masculina, tinha pontos questionáveis. Pelo contexto histórico em que Freud viveu, a saber, Viena, entre os anos 1856 e 1939, e, pelo fato de Sigmund Freud ser homem, Beauvoir, sem negar as importantes contribuições da psicanálise ao estudo da mulher, teceu algumas críticas fundamentais à compreensão da temática do feminino, relevantes até hoje.

Pensando na constituição de um sujeito, temos uma primeira questão: a partir de quando nos tornamos nós mesmos? A expressão amplamente utilizada, “desde que me entendo por gente”, mostra haver um período inicial na vida de todas as pessoas em que não somos capazes de nos reconhecer. O ‘si mesmo’, que às vezes nos parece ser algo inato, é, na verdade, uma conquista.

Uma criança, mesmo após aprender a falar, leva algum tempo para dizer: eu. Ela precisa de uma série de experiências que a orientam a se perceber como uma pessoa. Tornar-se um sujeito depende, portanto, de uma construção. Esse longo e trabalhoso processo ocorre durante toda a vida de um ser humano, diferentemente das outras espécies, e é na infância e na adolescência que essa formação se dá de forma mais intensa.

Para o psicanalista Jacques Lacan, (1956 p. 316) é o Outro que vai determinar que um Ser de necessidades, o bebê, torne-se um ser humano, um sujeito capaz de fazer escolhas e de desejar para além do desejo do outro (ainda que nunca completamente).

Ou seja: os caminhos que levam uma pessoa a ganhar alguma autonomia durante a vida são diversos, e isso faz do humano um ser complexo.

Obviamente, estamos falando até este momento de qualquer bebê humano, independentemente dos genitais que ele possua, o que nos leva a uma pergunta adicional: após esse primeiro momento de constituição, seriam os órgãos genitais determinantes da performance de gênero de cada sujeito, de forma binária?

Explica Simone: “Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade […] Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro.” (2019, p. 11)

Coisas de menina e coisas de menino, portanto, não são determinadas pela presença de um ou outro órgão genital, mas por marcadores socialmente definidos.

Apesar disso, sabemos que existem diferenças, elas não são pequenas, mas estão muito além do “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, ou, mulheres têm vulva e homens têm pênis.

Para falar sobre a mulher nesse mês dedicado a lembrar das lutas pela igualdade de gênero, retomamos a pergunta inicial: o que é ser mulher?

Performar o papel de uma mulher na sociedade pode parecer fácil. Há muitas regras socialmente aprendidas e propagadas como “naturais” ou “instintivas”. São diretrizes dadas desde muito cedo para uma menina. Aquelas que as seguirem serão consideradas uma mulher perante os outros.

Sente direito, não use roupas curtas, não sorria demais, não fale alto, não seja desagradável com o outro (mesmo se a pessoa for inconveniente), não pense demais, não discorde, não tenha grandes ambições, não fique com meninos demais, dê-se ao respeito, ainda que os outros não te respeitem, não tenha prazer sexual, mas finja que sim, para manter o “seu” homem seguro em sua ilusão de virilidade; e, finalmente, quando um deles lhe der a honra de pedir-te em casamento, sorria, aceite e tenha filhos. Seja uma mulher–troféu, a mulher que edifica o lar.

Essas são algumas das normas para ser uma “boa mulher”!

Algumas, quando “falham”, sentem culpa e seguem tentando “acertar”. Outras, questionam esses códigos estabelecidos; elas têm um desejo pulsante de SER. Atrevem-se a viver conforme seus desejos, contrariando o papel esperado delas.

Sabemos, porém, que não há liberdade sem luta, e é por esse motivo que há um dia comemorado em mais de cem países, todos os anos, para lembrar desses seres humanos que lutam diariamente e que desejam se libertar das injustiças e das violências de gênero que sofrem.

Desde 1975, o 8 de março foi instituído pela Organização das Nações Unidas como o Dia Internacional das Mulheres.

Esse dia, quando capturado pela lógica de nossa sociedade de consumo, torna-se um dia “fofo”, dia para ganhar rosas ou chocolates. Porque não vemos presentes como livros, folga remunerada, ou melhor ainda, o pagamento igualitário de salários, por exemplo? É simbólico, são presentes que procuram manter a mulher numa posição dócil e cuidadora. Portanto, é fundamental não esquecermos que esse é um dia de protesto e de lutas por direitos. Luta pela igualdade, pela sobrevivência e segurança de corpos femininos.

É arriscado ser mulher. Em 2022 o Brasil registrou, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 74.930 vítimas de estupro, o que equivaleria em média a 205 estupros por dia. Desses casos, 60% aconteceram com meninas de 0 a 13 anos.

Além disso, mulheres morrem por inúmeras violências, tantas que foi preciso inventar um nome para a morte de uma mulher simplesmente por ser mulher (seja ela cis ou transgênero): FEMINICÍDIO. Desde 2015, quando esse crime passou a ser definido por lei, foram mais de 10 mil mortes, número que seria bem maior, segundo o Fórum de Segurança Pública, não fosse a subnotificação de casos. São mais de 4 mulheres mortas, diariamente, por violência de gênero.

Freud chegou a dizer que a mulher teria inveja do pênis, e aqui retomamos uma das críticas de Simone de Beauvoir ao pai da psicanálise. Na realidade, o que Freud talvez não tenha percebido é que a inveja, que de fato havia, não estava relacionada ao órgão genital, e sim às facilidades e privilégios que acompanhavam e ainda acompanham os homens, desde a tenra idade e o desequilíbrio das relações de poder em uma sociedade patriarcal e machista. As regras, para eles, são adaptáveis a cada indivíduo, se honrarem a regra básica: o poder é do homem, tudo segue “normalmente”.

Há um preconceito inconsciente que leva homens e mulheres a verem maiores capacidades de liderança, inteligência e equilíbrio emocional nos homens. Por ser inconsciente, seguimos reproduzindo estereótipos e falas machistas, com justificativas baseadas em supostas e falseadas determinações biológicas que nos remeteriam a questões de instinto animal, diferenças e condutas predeterminadas “por natureza”, fazendo-nos perder de vista todo o percurso que cada sujeito fez, na relação com o Outro, em seu contexto histórico, ao constituir o seu “si mesmo”.

Mulheres precisam lutar por igualdade. Para isso, precisam se desvencilhar do medo. Algumas, infelizmente, pela forma como nos estruturamos enquanto sociedade, tornam-se cúmplices do opressor. Mulheres belas, recatadas e do lar honram a regra que mantém os homens no topo, intocáveis em seus privilégios. O problema é que, mesmo seguindo à risca a cartilha, essas mulheres não estão seguras, nem emancipadas. Não há saída, a não ser pela luta por direitos.

Mulheres, uni-vos! Homens, a luta é de vocês também! A perda de privilégios, que assusta, é certamente o início necessário de um caminho para um mundo mais igualitário, diverso e seguro.

Lembrar do Dia das Mulheres é enaltecer também a liberdade. Ser Mulher é para as fortes. Belas, por serem elas, não recalcadas e do Mar… ou do Bar, ou até mesmo do Lar, onde cada uma quiser.

DIAS MULHERES VIRÃO!

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