Uma relação de amor, ódio e dependência, entre mãe e filha, é o enredo do belíssimo e acachapante livro de Eliane Brun, “uma duas”

uma duas, obra de Eliane Brum (2011), é genial. Normalmente evito esse adjetivo – o grande escritor Ariano Suassuna (1927-2014) fala sobre isso em uma de suas aulas magnas: não se pode “gastar” uma palavra dessas, elas precisam ser cuidadosamente pensadas para tentar corresponder de forma fidedigna à realidade. Pensei em outros adjetivos que pudessem qualificar o livro; extraordinário, notável, impressionante e surpreendente me vieram à mente, mas nenhum encaixou de maneira perfeita. Não encontrar uma palavra que defina e revele tudo o que se pretende é bastante psicanalítico. Como passar com veracidade as minhas impressões sobre a obra? A Verdade, com V maiúsculo, é da ordem do impossível, é sempre não-toda e temos que lidar com isso. Dessa forma, decidi nomear a obra como genial mesmo. Pode soar um exagero para alguns, e apenas quem ousar ler o trabalho de Eliane poderá dizer por si. Para mim, foi acachapante. 

Começando pelo título:  umaduas, escrito assim, com uma separação quase imperceptível entre a palavra Uma e a palavra Duas, violando a gramática. Essa forma de grafar revela de início uma relação intrincada. Uma mãe e uma filha, duas pessoas que quase se fundem durante toda a trama, durante toda a vida. Uma verdadeira aula de teoria edipiana.  As histórias se misturam, as personagens também. Ambas escrevem suas memórias como podem, com as palavras que encontram, tropeçando nos seus significados e sentimentos. Fazem escritas sobre o impossível, tentam colocar suas experiências e pensamentos em palavras que nunca serão suficientes para dizer o que querem e sempre deixarão algo de fora, mas, à medida que se expressam, vão dando contorno e borda para si mesmas, nessa relação simbiótica.

O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) dizia que a essência da comunicação é o mal-entendido. Ele sabia das coisas, não de todas, mas arriscava dizer. Escreveu pouco, a maior parte de sua obra foi apresentada em seminários presenciais e estenotipadas, o que permitiu que suas ideias pudessem ser apresentadas em forma de livro àqueles que não participaram dos famosos encontros em Paris. A marca do discurso oral no texto escrito é observável, talvez por isso tantos considerem Lacan incompreensível. Welson Barbato, psicanalista falecido em 2017, afirmava que Lacan não se lia, se pesquisava. Gosto do desafio.

Por outro lado, alguns conseguem manejar a junção de letrinhas com muito jeito, se expressando com fluidez e facilidade. Foi o caso de Freud (1856-1939), que não explica tudo, como muitos gostam de dizer, mas que conseguiu colocar no papel uma teoria que revolucionou a forma de ver e tratar a doença psíquica, e de quebra, ganhou o prêmio Goethe de literatura pelo conjunto de sua obra. 

Eliane Brum também escreve lindamente, brinca com as palavras. São duras e ásperas, depois macias e suaves, outras vezes, áridas e melancólicas. É dramático. Não é um texto para pessoas muito sensíveis, é necessário ter coragem para ler a obra. Suspeito que ela tenha lido e bebido da fonte freudiana.

A história começa com o relato de uma mulher de meia idade que, contra a sua vontade, é chamada a cuidar de sua mãe doente.  A filha, mesmo às voltas com terríveis lembranças dessa relação conturbada, volta para zelar/vigiar essa pessoa, tão próxima e tão estranha ao mesmo tempo. Não vê outra saída.

Laura é uma jornalista que aprendeu a escrever sobre a vida dos outros para não ter que pensar e experienciar a própria. Porém, vivendo juntas, ela é obrigada a experimentar novamente o gosto dessa relação – se rebela, sofre, se rasga por dentro e por fora, mas está lá, no antigo apartamento de infância, junto à sua mãe. 

Coloca em palavras acontecimentos tenebrosos e repulsivos do passado. Relatos terríveis, histórias violentas e angustiantes, difíceis de ler. No fundo, mesmo sabendo que o amor materno é um mito, parecemos gostar de guardar essa imagem da mãe santa, mulher sempre amorosa por puro instinto. Entretanto, tudo o que lemos des(cons)trói o mito e ficamos compadecidos pela má sorte de alguém ter Maria Lúcia como mãe. Essa repulsa que o leitor sente, porém, se transforma quando a “megera” começa a escrever. Ao ler sua narrativa, percebemos as complexidades daquele ser, até então, detestável.  A mãe, ao contar sobre sua própria vida, se humaniza aos nossos olhos. 

Menina órfã desde o dia em que nasceu, Maria Lúcia foi criada sob as garras de um pai autoritário. Um homem que a aparta do mundo, do Outro, o Outro responsável pela constituição de um sujeito e de sua subjetividade, o “tesouro dos significantes”, segundo Lacan (1960 p. 820).  A pretexto de mantê-la livre dos perigos, o pai não faz a sua função. Aparentemente cuidadoso aos olhos de terceiros, o genitor se revela, a cada página, absolutamente cruel. Ele impede a menina de ir à escola e de se relacionar com qualquer pessoa que não fosse ele. Serve-se dela como quem se serve de uma máquina de escrever. Ela é puro objeto de seu gozo. Dita cartas às suas amantes, ela escreve sem entender e sem questionar. O pai supõe que, sem acesso ao mundo externo, Lúcia não entenderia ou decodificaria o conteúdo dos textos, porém, há eventos inexplicáveis em um ser humano, há brechas, e é por elas que surge a luz, o desejo de saber. Contra as ordens do oficial do exército, ela sorrateiramente checa uma palavra no dicionário. Essa descoberta é um lampejo de clareza, entende a posteriori o que o pai ditava, contudo, sem interlocução e, portanto, sem a possibilidade de simbolizar esses acontecimentos, ela não sabe o que fazer com as palavras que ouviu. Em passagem ao ato, bate com a cabeça na parede para não mais pensar. No hospital, o médico percebe algo estranho na relação pai-filha, mas não interfere e acaba se tornando cúmplice da violência que Maria Lúcia sofria. O pai tem permissão de continuar fazendo o que bem quer de sua filha/objeto.

Para encurtar a história e trazer Laura para a trama, o pai morre subitamente.  Nesse momento, o porteiro do prédio toma o lugar dele na vida de Maria Lúcia, mais um homem que, a pretexto de “cuidar”, a violenta, a estupra e a engravida. 

A barriga cresce, Laura nasce.

A mulher/mãe, ao ficar sozinha com a filha, tenta matá-la como já havia feito, com sucesso, com os bebês anteriores. Durante o ato, a menina olha em seus olhos. Por um instante, Maria se vê através dos olhos da filha – o que normalmente seria um momento de reconhecimento do bebê, acaba sendo para a mãe, que enxerga a si mesma. O olho da menina a reflete como um espelho e ela a salva. A menina que era ela, ela nos olhos da menina. Uma que eram duas, duas que eram uma. Mãe e filha dormem juntas enquanto o genitor, que trabalha de madrugada, pouco as encontra.  Um dia, chegando em casa, vê a adolescente mamando no seio da mãe e vai embora para sempre. Na verdade, nunca esteve realmente presente.

Laura se incomoda com essa proximidade da mãe, mas o medo de ficar sozinha era maior que o incômodo de ter uma mãe quase onipresente. Um dia, adulta, vence o medo e muda de casa. A separação é puramente física, continuam unidas psiquicamente. Suas individualidades e desejos se misturam. Poderíamos fazer uma análise selvagem e dizer que a relação é um tipo clássico de édipo negativo. Porém, assim como na clínica psicanalítica, a aparência do complexo de édipo é sempre muito mais do que uma historinha de triângulo amoroso entre genitores e filhos. A história de Maria Lúcia e Laura é complexa. 

Durante o processo da doença da mãe, as duas moram juntas e apesar de não trocarem mais do que algumas palavras uma com a outra, escrevem secretamente sobre a relação. O ódio, mas também o amor, são sentimentos que as unem. Para Laura e Maria Lúcia uma situação quase mortífera. Duas metades que apenas juntas formavam um inteiro.

Para conseguir viver longe da mãe, Laura precisava se cortar. Milhares de cortes pelo corpo todo, sem a intenção de se matar. É provável que apenas desejasse eliminar a presença maciça da mãe incorporada em si, enquanto sangrava e doía, sentia ter um corpo só seu. 

O paradoxo é que morando juntas e escrevendo sobre as suas vidas, as duas começam finalmente a se separar. Percebem-se, à medida que escrevem, sujeitos de seu próprio desejo. Tal qual uma análise bem conduzida, a escrita as ajuda a ressignificar suas experiências de vida e sua conturbada relação. A verdadeira separação acontece somente nos últimos dias de Maria Lúcia, não por causa morte que apenas concretiza a separação objetivamente, mas pelo movimento que ambas realizam. As duas se movimentam de seus lugares passivamente ocupados após tantos anos, e agem.

Em clima de indignação com o autoritarismo médico, elas se rebelam. Não havia o que fazer, a doença havia se espalhado por todo o corpo, mas os médicos preferiam mantê-la sofrendo com um tratamento inútil a deixá-la morrer, em paz e sem dor. Laura então faz, por amor, o que a mãe fez com os seus “irmãos” e um dia tentou fazer com ela.  Olhando em seus olhos, Laura vê Maria Lúcia e finalmente a enxerga. Tomada de compaixão, ela age com cuidado e, escondida, injeta os remédios necessários para que a mãe morresse com dignidade e sem dor.  

Maria Lúcia e Laura se veem pela última vez uma nos olhos da outra. Dois seres, enfim, distintos. UMA  –  OUTRA.

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